segunda-feira, 31 de maio de 2010

Você tem direito de dizer não a experimentação animal!

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22/05/2010

O direito à escusa de consciência na experimentação animal

Laerte Fernando Levai - laertelevai@uol.com.br

1. INTRODUÇÃO
A experimentação animal, definida como toda e qualquer prática que utiliza animais para fins didáticos ou de pesquisa, decorre de um erro metodológico que a considera o único meio para se obter conhecimento científico. Abrange a vivissecção, que é um procedimento cirúrgico, invasivo ou não, realizado em animal vivo. Ela ocorre com freqüência no ensino didático e nas pesquisas de base realizadas nas faculdades de medicina, biologia, veterinária, zootecnia, educação física, odontologia, farmácia, etc, apesar de alunos nem sempre a receberem com naturalidade. Sabe-se afinal, que apesar do ilusório paliativo representado pelo emprego de anestesia, os animais perdem a vida em experimentos invariavelmente cruéis, submetidos que são a testes cirúrgicos, toxicológicos, comportamentais, neurológicos, oculares, cutâneos, psicológicos, genéticos, bélicos, den tre outros tantos, sem que haja limites éticos - ou mesmo relevância científica - em tais atividades. Macabros registros de experiências com animais praticadas nos centros de pesquisa, nos laboratórios, nas salas de aula, nas fazendas industriais ou mesmo na clandestinidade, revelam os ilimitados graus da estupidez humana. Sob a justificativa de buscar o progresso da ciência, o pesquisador prende, fere, quebra, escalpela, penetra, queima, secciona, mutila e mata. Nas suas mãos o animal vítima torna-se apenas a coisa, a matéria orgânica, enfim, a máquina-viva.
Predomina no meio acadêmico, via de regra, a mentalidade vivisseccionista. O método científico oficial, herança francesa dos ensinamentos do filósofo Renê Descartes (1596-1650) e do fisiologista Claude Bernard (1813-1878), faz com que ainda hoje o corpo docente repasse aos alunos as informações que recebeu e assimilou passivamente, ao longo de várias gerações, como a única fonte "confiável" de conhecimento. A autoridade do professor, representante da instituição escolar, assim como a metodologia reducionista por ele adotada, raramente é questinada pelo estudante da área de biomédicas, que se cala por receio de se prejudicar na avaliação superior e por temor reverencial, inclusive. Nesse contexto, a ordem emanada da universidade torna-se imperiosa, oriunda de uma autoridade que incorpora uma verdade científica particular e que, sem admitir refutações, dec ide o que é certo ou errado no ensino, que manda e quem obedece, quem mata e quem morre.
Em termos legais, a atividade vivisseccionista esteve durante muito tempo respaldada unicamente na Lei federal nº 6.638/79. Com o advento da Lei dos Crimes Ambientais (Lei nº 9.605/98), na qual o legislador inseriu um dispositivo específico sobre crueldade para com animais, sua prática passou a ser considerada delituosa caso não adotados os métodos substitutivos existentes. É que o artigo 32 § 1o do diploma jurídico ambiental incrimina "quem realiza experiência dolorosa ou cruel em animal vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos, quando existirem recursos alternativos", cominando aos infratores pena de três meses a um ano de detenção, além de multa, sem prejuízo da respectiva sanção pecuniária administrativa.
Considerando a existência, na atualidade, de uma vasta gama de recursos hábeis a livrar os animais de seus padecimentos na mesa do vivissector, faz-se necessária uma mudança de paradigma na mentalidade dos mestres e dos pesquisadores, uma pequena revolução interior que lhes permita conciliar a ética à atividade didático-científica. O caminho já foi indicado na própria Lei Ambiental: adoção de métodos alternativos à experimentação animal. Mencionado dispositivo ajusta-se perfeitamente ao mandamento supremo expresso no artigo 225, § 1º, VII, da Constituição Federal, em que o legislador houve por bem vedar as práticas que submetam animais à crueldade: "Incumbe ao Poder Público proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as prátic as que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção das espécies ou submetam os animais à crueldade". Daí a legitimidade de o estudante de biomédicas em buscar meios mais compassivos de pesquisa, os quais já existem e poderiam ser colocados em prática nas escolas.
É preciso, para isso, romper o silêncio que impera no campo da experimentação animal, enfrentando os tabus existentes, desmistificando crenças, questionando verdades preconcebidas, ampliando nossa perspectiva ética e projetando a noção do justo para além da espécie dominante. Como bem escreveu o professor Thales Tréz, no prefácio ao livro "Alternativas ao uso de animais vivos na educação", de autoria do biólogo Sérgio Greif, a vivissecção faz com que os próprios alunos se tornem vítimas indiretas de seu equivocado método de pesquisa: "O uso de animais expõe o estudante muitas vezes a contradições, como o de matar para salvar, ou desrespeitar para respeitar. Segundo ele, "a prática do uso de animais seja em que área for, é insustentável do ponto de vista econômico, ecológico, ético, pedagógico e principalmente, incompatível com uma postura de respeito e cuidado para com a vida".
Uma das formas legais de o estudante de ciências biomédicas desafiar a ordem cultural vigente é recorrer à cláusula de objeção de consciência à experimentação animal. Semelhante, sob certos aspectos, à desobediência civil, ela constitui uma legítima recusa à metodologia científica oficial, ao permitir que o aluno dissidente resguarde suas convicções filosóficas diante de procedimentos didáticos que se perfazem mediante a matança de outros seres senscientes. A objeção de consciência, portanto, é um ato praticado pelo sujeito que se recusa a obedecer à ordem superior que viola sua integridade moral, espiritual, cultural, política, etc. Trata-se de um legítimo direito do estudante, que, de modo pacifico, o invoca não apenas para resguardar as suas convicções íntimas garantidas pela Carta Política, mas sobretudo para salvar a vida e poupar os animai s de sofrimentos. Neste ponto há uma interessante hibridez na atitude estudantil objetora, em que a conduta ética ultrapassa a barreira das espécies para constituir em instrumento político para uma mudança de paradigma.
O fundamento jurídico para invocar a resistência passiva encontra-se principalmente no capítulo dos Direitos e Garantias Individuais da Constituição Federal - artigo 5º, incisos VIII -, conjugado com incisos II e VI (parte inicial) e no artigo 225 par. 1º, inciso VII (parte final) da Carta da República, podendo ser exercido mediante o exercício do direito de petição no âmbito administrativo (art. 5º, inciso XXXIV), sem prejuízo de o interessado - se necessário - ingressar em juízo com Mandado de Segurança (artigo 5º, LXIX, da CF).
2. O ALTAR CIENTIFICISTA
Foi a partir do racionalismo de René Descartes que o uso de animais para fins experimentais tornou-se método padrão na medicina. Tal filósofo justificava a exploração sistemática dos animais, equiparando-os a autômatos ou a máquinas destituídas de sentimentos, incapazes de experimentar sensações de dor e de prazer. Ficaram famosas, a propósito, as vivissecções de animais realizadas por seus seguidores na Escola de Port-Royal, durante as quais os ganidos dos cães seccionados vivos eram interpretados como um simples ranger de uma máquina. Foi o auge da teoria do animal-machine.
Em meados do século XIX Claude Bernard lançou as bases da moderna experimentação animal com a obra "Introdução à medicina experimental", considerada por muitos como sendo a ‘bíblia dos vivissectores'. A partir daí a atividade experimental em animais ganhou novo impulso, sem qualquer preocupação ética por parte dos cientistas. Cães, gatos, macacos, ratos, coelhos, dentre outras tantas espécies transformadas em meras "cobaias" em experiências, passaram a sofrer refinada tortura nas mesas cirúrgicas, sob a justificativa de seu ‘sacrifício' reverter em prol da ciência.
Os pesquisadores contemporâneos, salvo aqueles pertencentes à corrente antivivissecionista atuante em alguns países da Europa e nos Estados Unidos, ainda estão imersos no antigo paradigma reafirmador das ideologias cientificista e tecnicista. Embora significativa parcela deles demonstre certo desconforto em admitir seu envolvimento com o método científico-experimental, justificam-no alegando que a vivissecção é um mal necessário. A respeito desse assunto o professor João Epifânio Regis Lima propôs séria reflexão sobre a metodologia oficial que legitima a tortura em animais. Em brilhante tese de mestrado apresentada no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, em 1995, sob o título "Vozes do Silêncio - Cultura Científica: Ideologia e alienação no discurso sobre vivissecção", ele teve o mérito de questionar a postura c ientífica dominante, na qual o capitalismo, o cientifismo e o tecnicismo constituem o tripé ideológico que sustenta as bases do sistema social vigente. Algumas de suas observações, nesse pioneiro trabalho crítico, merecem ser transcritas:
"Defender a vivissecção como técnca única (ou unicamente confiável) de exploração biológica a nível orgânico e médito é partir do princípio (positivista) de que apenas os fatos concretos e diretamente observáveis são fonte seguro de conhecimento".
"Além de considerarem a ciência como a forma por excelência de adquirir conhecimento sobre o mundo, adota-se uma maneira particular de resolver problemas específicos a uma determinada área do conhecimento como sendo única, caracterizando a imersão em um paradigma, o qual, estando acima de qualquer suspeita, não é questionado".
"A vivissecção, ou os pressupostos e princípios de que ela parte, acabaria desempenhando papel importante como afirmadora de uma ordem cultural de uma hegemonia, na medida em que define quem mata e quem morre, quem é sacrificável e quem não o é".
"Mal necessário significando ‘não gosto, mas não há saída, não tenho saída' revela um acuamento, um constrangimento de possibilidades de ação".
Daí porque, conclui Regis Lima, o uso experimental de animais, no contexto acadêmico, apresenta-se como uma prática inercial, acrítica e tradicional, funcionando como instrumento de reafirmação de determinada ordem cultural:
"Toma-se a instituição científica como acima de qualquer suspeita e joga-se para ela a responsabilidade pela decisão, já que é o próprio paradigma por ela apresentado (que é tido como inquestionável) quem vai definir a prática. Neste caso, mesmo havendo desagrado com relação a ela, a dissonância e a tensão se encontram bem diminuídas ou mesmo inexistentes. A prática vivisseccionista - critica o autor - é vista como fato ‘consumado', por ‘natural' e ‘necessária' (in Ob Cit., p. 182).
Aos olhos do pesquisador, portanto, os animais tornam-se criaturas eticamente neutras, coisas, produtos, matrizes ou peças de reposição, tratados como meros objetos descartáveis. Remanesce, na comunidade científica, um profundo silêncio sobre esse assunto, no qual a vivissecção funciona como instrumento de reiteração da ordem cultural vigente. Em meio a esse contexto impositivo, surge o direito à escusa de consciência como forma legítima de salvaguardar consciências e preservar convicções filosóficas.
É possível compreender, portanto, o acuamento do estudante em face de uma situação de conflito. Há que se considerar, nesse contexto, o temor reverencial do aluno em face de uma ordem emanada de seus superiores, até porque se sabe que as universidades costumam valer-se do principio da autoridade para impor sua metodologia. A Lei de Diretrizes e Bases, porém, em nenhum momento afirma que a experimentação animal é obrigatória nos cursos de biomédicas, tampouco permite que seu modelo curricular seja interpretado nesse sentido.
Há que se dizer, a propósito, que nenhuma lei ordinária está acima da Constituição Federal, onde a norma da escusa de consciência foi estabelecida como princípio consagrado em meio aos direitos e garantias individuais, à guisa de cláusula pétrea.
3. MÉTODOS ALTERNATIVOS
Verifica-se que a norma jurídica ambiental do artigo 32 par. 1º da Lei nº 9.605/98 reconhece a crueldade implícita na atividade experimental sobre animais, tanto que se adiantou em indicar outros caminhos para impedir a inflição de sofrimentos. Se hoje a realização de experimentos está condicionada à ausência de métodos alternativos, isso significa - na lúcida visão dos biólogos Sérgio Greif e Thales Tréz ("A verdadeira face da experimentação animal", p.137) - que, ao menos no plano teórico, a atividade vivisseccionista contraria a lei. Afinal, técnicas alternativas ao uso do animal em laboratórios já existem dentro e fora do país.

A busca de um ideal aparentemente utópico, o de abolir toda e qualquer forma de experimentação animal, tanto na indústria como nas escolas, não permite o comodismo nem o preconceito. Imprescindível que o cientista e/ou professor saia da inércia acadêmica para trazer aos centros de pesquisa e às universidades alguns dos métodos alternativos já disponíveis e que poderiam perfeitamente ser adotados no Brasil, dispensando o uso de animais.

Há que se relacionar aqui, a título exemplificativo, alguns dos mais conhecidos RECURSOS ALTERNATIVOS que se ajustam ao propósito do legislador ambiental e que poderiam, vários deles, inspirar uma metodologia científica verdadeiramente ética, a saber:

* Sistemas biológicos ‘in vitro' (cultura de células, de tecidos e de órgãos passíveis de utilização em genética, microbiologia, bioquímica, imunologia, farmacologia, radiação, toxicologia, produção de vacinas, pesquisas sobre vírus e sobre câncer);
* Cromatografia e espectrometria de massa (técnica que permite a identificação de compostos químicos e sua possível atuação no organismo, de modo não-invasivo);
* Farmacologia e mecânica quânticas (avaliam o metabolismo das drogas no corpo);
* Estudos epidemiológicos (permitem desenvolver a medicina preventiva com base em dados comparativos e na própria observação do processo das doenças);
* Estudos clínicos (análise estatística da incidência de moléstias em populações diversas);
* Necrópsias e biópsias (métodos que permitem mostrar a ação das doenças no organismo humano);
* Simulações computadorizadas (sistemas virtuais que podem ser usados no ensino das ciências biomédicas, substituindo o animal);
* Modelos matemáticos (traduzem analiticamente os processos que ocorrem nos organismos vivos);
* Culturas de bactérias e protozoários (alternativas para testes cancerígenos e preparo de antibióticos);
* Uso da placenta e do cordão umbilical (para treinamento de técnica cirúrgica e testes toxicológicos);
* Membrana corialantóide (teste CAME, que utiliza a membrana dos ovos de galinha para avaliar a toxicidade de determinada substância); etc.

Inúmeros países considerados de primeiro mundo já aboliram o uso de animais em pesquisas didático-científicas, principalmente nas escolas, como se pode constatar das nações que integram a Comunidade Européia, o Canadá e a Austrália. Nos EUA, a propósito, mais de 70% das faculdades de Medicina não utilizam animais vivos, enquanto que na Alemanha esse índice é bem maior. Várias diretrizes da União Européia foram firmadas com o propósito de abolir os testes com animais, dentre eles os terríveis Drize Test e LD 50.

Assim, em oposição à doutrina científica oficial que fez da fisiologia um dos intocáveis mitos da ciência médica e influenciou seguidas gerações de pesquisadores, a corrente antivivissecionista vem ganhando força. Há que se registrar, ao longo dos tempos, vozes ilustres que se levantaram contra o massacre de animais na medicina, dentre elas as de Voltaire, Gandhi, Donald Griffin, Charles Bell, Alfred Russel Wallace, Pietro Croce, Hans Ruesch, Milly Shär-Manzoli, Carlos Brandt, George Bernard Shaw, Jane Goodall, Henry Salt, Mark Twain, Victor Hugo, Leon Tolstói, Richard Wagner, Richard Ryder, Tom Regan e Peter Singer.

Ao alvorecer do século XXI, no Brasil, algumas escolas superiores passaram a se empenhar na busca de alternativas à experimentação animal, como a Universidade de São Paulo (a Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia adota o método de Laskowski, que que no treinamento de técnica cirúrgica utiliza animais que tiveram morte natural), a Universidade Federal do Estado de São Paulo (que usa um rato de PVC nas aulas de microcirurgia), a Universidade de Brasília (onde o programa de farmacologia básica do sistema nervoso autônomo é feito por simulação computadorizada), afora aquelas cujo departamento de patologia realiza pesquisas apenas com o cultivo de células vivas.

Culturas de tecidos, provenientes de biópsias, cordões umbilicais ou placentas descartadas, dispensam o uso de animais. Vacinas também podem ser fabricadas a partir da cultura de células do próprio homem, sem a necessidade das técnicas invasivas experimentais envolvendo a sorologia. Isso sem esquecer dos modernos processos de análise genômica e sistemas biológicos in vitro, que, se realizados com ética, tornam absolutamente desnecessárias antigas metodologias relacionadas à vivissecção, em face das alternativas hoje existentes para a obtenção do conhecimento científico.

Na área didática, portanto, esses novos métodos de ensino podem perfeitamente dispensar o uso de animais. Sua metodologia encontra-se disponível na literatura científica antivivissecionista compilada pela rede Interniche, "From Guinea Pig to Computer Mouse" (2001) e no livro de Sérgio Greif, "Alternativas ao uso de animais vivos na educação - pela ciência responsável" (Instituto Nina Rosa, 2003)

4. A OBJEÇÃO DE CONSCIÊNCIA

Em 1987, nos EUA, a estudante Jenifer Grahan, da Universidade da Califórnia, recusou-se a dissecar um animal e foi ameaçada pela Escola. Não obstante isso, a aluna permaneceu firme em seus ideais e levou o caso ao Tribunal, certa de que a postura antivivisecionista era um direito que lhe assistia. Tal episódio é comentado pelo biólogo e escritor Sérgio Greif em seu livro "Alternativas ao uso de animais vivos na educação":

"Jenifer recorreu a um tribunal da Califórnia, que compreendeu a problemática e abriu precedentes para a atual lei estadual, que estabelece os direitos do estudante de não utilizar animais de forma destrutiva e prejudicial. Atualmente, cursos que utilizam animais vivos ou mortos, ou mesmo suas partes, necessitam notificar antecipadamente os estudantes, para que esses possam usufruir de seus direitos. Os professores podem desenvolver um projeto educacional alternativo com ‘tempo e esforço comparáveis' ou permitir que o aluno simplesmente se abstenha do projeto, não o prejudicando na nota final (...). Depois do caso de Jenifer, milhares de estudantes em todo o mundo escolheram por cursar disciplinas nas áreas biológicas de forma humanitária, e muitas escolas concordaram com a idéia, acatando a opção estudantil, por uma educação livre de viol ência" (Ob. cit., Instituto Nina Rosa, São Paulo, 2003, p. 28).

A escusa de consciência à experimentação animal, aliás, não se limitou ao Estado da Califórnia, nos EUA. Em 1993, na Itália, surgiu um diploma federal tratando especificamente desse assunto, a Lei 413/93, que deferiu a estudantes de biomédicas o direito à escusa de consciência. Essa avançada lei italiana, por sua vez, serviu de base para a lei municipal 4.428/99, de Bauru, Estado de São Paulo, cujos artigos 7º, 8º e 9º são expressos em permitir a objeção de consciência àqueles que lidam com experimentação animal em escolas ou centros de pesquisa.

A evolução legislativa prosseguiu a ponto de ser apresentado na Câmara dos Deputados, em 2003, um projeto de lei federal (PL 1.691/03) regulamentador da experimentação animal e permissivo da escusa de consciência, texto esse que se encontra atualmente tramitando em Brasilia. Para concluir essa linha de raciocínio, no sentido de que o legislador brasileiro inclina-se favoravelmente à inclusão formal desse direito individual nas universidades de biomédicas, há que se dizer que o recente Código Estadual de Proteção aos Animais (Lei n. 11.977/05, de São Paulo), contém um artigo específico sobre o assunto, que defere o direito à escusa de consciência ao estudante que não quiser perfazer experimentação animal.

Ao contrário do que ocorre na hipótese da prestação do Serviço Militar, de natureza obrigatória, inexiste no Brasil lei que obrigue alguém a praticar vivissecção ou experimentação animal e, portanto, não há que se falar em "obrigação legal a todos imposta". Daí porque, não havendo lei a ser descumprida, torna-se perfeitamente possível o exercício da objeção de consciência à experimentação animal, em face do consagrado princípio da legalidade. Considerando que a escusa de consciência é uma forma particular de resistência pacífica pelo estudante, ela assemelha-se à chamada Desobediência Civil, com o diferencial de que naquela hipótese a punição do aluno recalcitrante é incabível.

Soa paradoxal, nesse contexto, que estudantes de biologia sejam obrigados a perfazer experimentos cruéis em animais quando seu próprio Código de Ética, no artigo 2º, dispõe o seguinte:

"Toda atividade do Biólogo deverá sempre consagrar o respeito à vida, em todas as suas formas e manifestações e à qualidade do meio ambiente".

Justificar a necessidade didática da vivissecção sob o fundamento de que as leis visam antes ao interesse coletivo do que o individual e que essa metodogia ainda não pode ser substituída, data maxima venia, é pensar de modo estreito. Afinal, a defesa das liberdades individuais é uma garantia constitucional suprema. Diante de um conflito ético que envolve questões relacionadas à vida e/ou ao sofrimento alheio, cabe ao interessado fazer as suas escolhas, lembrando que a decisão particular de não violentar suas convicções filosóficas pode assumir natureza política e, portanto, coletiva, ao propagar junto à comunidade acadêmica a viabilidade legal de fazer opções compassivas sem risco de ser prejudicado em suas avaliações ou discriminado por suas atitudes.

O estudante objetor de consciência não pleitea a mera dispensa de uma atividade estudantil a todos exigida, mas o direito de preservar suas convições filosóficas e de, em razão disso, apresentar um trabalho científico alternativo, de pesquisa e de resultados, com um único diferencial: a metodologia. É possível, na realidade, fazer interessantes estudos na área de anatomia, zoologia ou fisiologia sem que para isso seja necessário matar animais.

5. ASPECTOS JURIDICOS

Nenhum aluno deve ser forçado a realizar experimentação animal, principalmente quando essa prática ofende suas convicções filosóficas ou morais. A opção em aderir, ou não, à metodologia didático-científica tradicional, deve ser interpretada não como uma liberalidade docente, mas como um legítimo direito do estudante, a quem se deve facultar contraprestação compatível ao tema proposto (realização de trabalho escolar e/ou desenvolvimento de estudo paralelo de natureza alternativa).

O direito à liberdade de consciência, aliás, consta do artigo 18, 1ª. parte, da Declaração Universal dos Direitos Humanos, carta proclamada em 1948 pela Assembléia Geral das Nações Unidas e devidamente subscrita pelo Brasil:

"Todo homem tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião".

Essa norma também foi consagrada na nossa Constituição Federal, cujo artigo 5º, VI, é expresso:

"É inviolável a liberdade de consciência e de crença...".

Não bastasse isso, o legislador constitucional também tratou da escusa de consciência, fazendo-o no capítulo dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos, artigo 5º, inciso VII:

"Ninguém será privado de direitos por motivos de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei",

Resta saber como conciliar, na prática, tais princípios magnos com o legítimo direito do estudante à objeção de consciência à experientação animal.

A liberdade de consciência é que fundamenta o pedido de objeção, porque o livre manifestação do pensamento costitui uma prerrogativa dos regimes democráticos Assim, qualquer pessoa que se sinta constrangida a fazer ou deixar de fazer algo que contraria seus valores morais, tem o direito de invocar objeção ou escusa de conciência, a não ser que haja uma lei que a obrigue a tal prática ou omissão. Ocorre que em nosso país inexiste lei que obrigue o estudante a perfazer experimentação animal. E, como se sabe, o consagrado princípio da legalidade, insculpido no artigo 5º, inciso II, da CF, informa que:

"Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei"

Ora, inexiste no Brasil lei que obrigue o aluno a perfazer experimentação animal. Ainda que o artigo 207 da Carta Magna assegure às universidades autonomia didático-científica, há que se dizer que essa autonomia possui limites. Da mesma maneira, a Lei de Diretrizes e Bases (Lei 9.384/96), ao garantir às instituições de ensino, antes de cada ano letivo, a elaboração dos programas dos cursos e demais componentes curriculares (art. 47, par. 1º), bem como a fixação dos currículos dos seus cursos e programas, observadas as diretrizes gerais pertinentes (artigo 53, II), não pode afastar-se do comando ético constitucional que veda a submissão de animais à crueldade. De fato, o artigo 225 par. 1º, inciso VII incumbiu ao Poder Público

"Proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção das espécies ou submetam os animais à crueldade"

Sob essa inspiração a própria Lei Ambiental (Lei 9.605/98), quase dez anos depois, ao tratar de experimentos dolorosos ou cruéis com animais vivos, ainda que para fins didáticos ou científicos, preconizou no par. 1º do artigo 32 a utilização de recursos alternativos:

"Incorre nas mesmas penas quem realiza experiência dolorosa ou cruel em animal vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos, quando existirem recursos alternativos" (art. 32 par. 1º da Lei 9605/98).

Quando um professor ou diretor da faculdade, todavia, nega o direito à escusa de consciência pleiteado pelos estudantes, alegando que a prática vivissseccionista está imersa na autonomia da universidade, gera com isso um sério impasse no meio acadêmico: ou os alunos realizam o trabalho cuja metodologia atenta contra suas convicções filosóficas ou se prejudicam na nota final, correndo o risco de reprovação. Agindo dessa forma, o docente acaba assumindo o papel de autoridade coatora. Isso porque, ao violar um direito líquido e certo expressamente previsto na Constituição Federal, possibilita - em contrapartida - a interposição de mandamus pelos alunos ofendidos em suas convições éticas.

O argumento de que o artigo 207 da CF e os artigos 47 e 53 da Lei de Diretrizes e Bases garantem à Universidade a autonomia didático-científica para decidir de acordo com seus próprios interesses, não possui caráter absoluto. Isso porque a autonomia didático-científica não é irrestrita, tanto que a Lei de Biossegurança - aprovada recentemente - estabeleceu limites para a pesquisa científica. Se assim não fosse, seria desnecessária a autorização legal dada pelo Congresso à utilização de células embrionárias para as pesquisas de células-tronco. Outro exemplo são os trotes acadêmicos - alguns deles de conseqüências trágicas - que acontecem dentro das Universidades. É claro que se crime houver, a Escola não poderá acobertá-lo sob a alegação de que possui autonomia própria para resolver os problemas ocorridos em seu campus. Nes te caso, a lei ordinária deverá ser aplicada independentemente do local em que se deu o fato delituoso.

Daí porque a autonomia conferida pelo artigo 207 da Constituição da República não é absoluta, e sim relativa, haja vista que a Universidade não pode colocar-se acima da lei. Se por acaso ocorresse no campus um corte ilegal de árvores ou a poluição de um lago, com danos à natureza, evidente que a Universidade também não poderá invocar sua autonomia para justificar esse desastre ambiental. Da mesma forma, não poderá praticar e/ou compactuar com a prática de maus tratos para com os animais - conduta vetada por lei - valendo-se do argumento de que possui autonomia didático-científica para decidir o que seja, ou não, cruel.

Ainda que assim não fosse, isto é, ainda que se quisesse entender que a autonomia universitária só encontra limite na Constituição Federal - o que se admite apenas para argumentar - o artigo 225 par. 1º, VII da CF veda as práticas capazes de submeter os animais à crueldade, não se podendo excluir delas a experimentação animal. Se existe um conflito aparente de normas entre os artigos 207 e 225 da Carta Política brasileira, evidente que deve prevalecer o segundo mandamento, por contemplar um valor mais elevado (a vida).

Daí a necessidade do reconhecimento legal da cláusula de objeção de consciência à experimentação animal, realidade já existente nos EUA, na Europa e que se inicia, aos poucos, no Brasil. Trata-se de um processo evolutivo do pensamento, voltado à educação humanitária e que busca o conhecimento científico de uma maneira diversa da tradicional. Se a legislação brasileira garante tal direito àqueles que se constrangem em eliminar vidas - consideradas estas em todas as suas formas e manifestações - , por que negá-lo? Por que desprezar as convicções filosóficas de estudantes antivivissionistas que se propõem a elaborar trabalhos alternativos que não violem suas consciências? Por que fechar os olhos para outra forma de pesquisa didático-científica que não implique na coleta e morte de animais? Por que aceitar como justo um sistema de ensino contraditório, que a pretexto de ensinar propõe-se a prender e a matar?

Respostas a tais indagações somente serão satisfatórias se houver conciliação entre os princípios científicos e os filosóficos que envolvem a questão. Ainda que a metodologia oficial adotada pela ciência seja invasiva, não se pode negar o surgimento, principalmente no meio acadêmico, de uma corrente biomédica antivivissecionista, que pleiteia a adoção de recursos substitutivos à experimentação animal e que defende o direito à objeção de consciência aos alunos que assim o desejarem. Obrigá-los a fazer o que seus princípios de vida não recomendam, sob ameaça de reprovação e sem dar a eles a oportunidade da prestação alternativa, isso sim representa uma violência, algo que se traduz em ilegalidade e abuso de poder porque viola um direito líquido e certo.

Resta aos alunos, na hipótese de injustificado indeferimento do seu requerimento de escusa pela autoridade administrativa acadêmica, recorrer às vias judiciais. Ao impetrar Mandado de Segurança (Lei n. 1533/51), com pedido de liminar, o estudante invocará o seu direito à objeção de consciência e, paralelamente, o de apresentar trabalho alternativo sobre o mesmo assunto proposto pelo professor da matéria, com o diferencial de ele ser elaborado sem a necessidade de ferir ou matar criaturas senscientes, preservando o objetor, desse modo, suas convicções morais e filosóficas.
O Ministério Público, a quem toca a tutela jurídica da fauna e o cumprimento das leis, não deve se omitir diante dessa cruel realidade. Atuando na condição de substituto processual dos animais (artigo 3º, par. 3º do Decreto nº 24.645/34) e curador do meio ambiente (artigo 129, III, da Constituição Federal), o promotor de justiça pode agir preventivamente, recomendando às escolas e aos institutos de pesquisa - de modo oficioso - a necessidade da substituição do uso animal pelos métodos alternativos e a garantia do direito de escusa à consciência para os alunos que porventura o quiserem.
6. CONCLUSÕES ARTICULADAS
6.1. A experimentação animal, prática ainda corriqueira na maioria dos laboratórios, centros de pesquisa ou estabelecimentos de ensino biomédico, no Brasil, é uma atividade imersa na ideologia científica dominante, na qual os animais - tidos como objetos de estudo ou peças descartáveis - são tratados de forma cruel, à guisa de seres eticamente neutros.
6.2. A Lei da Vivissecção (Lei federal nº 6.638/79), porque anterior à Constituição Federal, deve hoje ser interpretada à luz da Lei dos Crimes Ambientais (Lei federal nº 9.605/98), cujo artigo 32 par. 1º condiciona o uso de animais para fins científicos ou didáticos à inexistência de recursos alternativos, lembrando que esses métodos já são conhecidos e estão disponíveis no Brasil.
6.3. Semelhante à desobediência civil, direito de garantia contido no mandamento do artigo 5º, inciso II, da CF, a objeção de consciência à experimentação animal é uma forma particular de resistência pacífica invocada pelo estudante que, pretendendo resguardar suas convicções filosóficas, recusa-se a perpetrar atos de violência em detrimento de seres vivos.
6.4. Ao objetar a consciência em face de uma ordem superior que lhe põe em situação de conflito, o aluno age não apenas em benefício próprio, mas sobretudo para salvar a vida e evitar o sofrimento animal, demonstrando uma postura ética ampla que alcança, também, um sentido político.
6.5. Há que se garantir a possibilidade de o estudante da área de biomédicas invocar em seu próprio favor, sem riscos de represálias, a opção pela escusa de consciência à experimentação animal, com fundamento no artigo 5º, inciso VIII, da Constituição Federal, porque ninguém pode ser obrigado a fazer aquilo que desrespeite seus princípios filosóficos, culturais ou políticos, tampouco que ofenda sua integridade moral e espiritual.
6.6. Os preceitos estabelecidos na Lei de Diretrizes e Bases ou respaldados na autonomia didático-científica da Universidade não podem sobrepor-se às garantias individuais previstas na Constituição Federal (dentre elas o direito à objeção de consciência) para obrigar o aluno a práticas que violem sua consciência moral, como ferir e matar animais em nome de um suposto aprendizado e/ou progresso científico.
6.7 O direito à objeção de consciência nas atividades de experimentação animal, longe de se constituir mera liberalidade da Instituição de Ensino adepta da metodologia tradicional, é um direito líquido e certo dos alunos, a quem se permitirá uma contraprestação didática - trabalho alternativo ou atividade similar - compatível com a postura antivivissecionista.
6.8. Para exercer tal direito o estudante deve protocolar seu pleito de resistência junto ao professor da disciplina cuja metodologia é objetada ou diretamente ao diretor da Escola, fazendo-o com fundamento no artigo 5º, incisos VIII (escusa de consciência) e XXXIV, "a" (direito de petição), da CF e com a possibilidade de recorrer às vias judiciais, nos termos do art. 5º, inciso LXIX da CF (Mandado de Segurança), na hipótese de o pedido ser negado.
6.9. Ao Ministério Público, no exercício de suas funções institucionais, cumpre também defender os animais submetidos à vivissecção, podendo o promotor expedir Recomendações, firmar Termo de Ajustamento de Conduta ou ingressar com Ação Civil Pública, sem prejuízo de exigir que as faculdades da área de biomédicas, em sua comarca, disponibilizem ao aluno, desde a ocasião da matrícula, formulários permissivos da cláusula de objeção de consciência à experimentação animal.
Bibliografia
FELIPE, Sônia T. Por uma questão de princípios - Alcance e limites da ética de Peter Singer em defesa dos animais. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2003.
GARCIA, Maria. Desobediência Civil - Direito Fundamental. São Paulo: RT, 1994.
GREIF, Sérgio; TRÉZ, Thales. A Verdadeira Face da Experimentação Animal: a sua saúde em perigo. Rio de Janeiro: Sociedade Educacional Fala Bicho, 2000.
GREIF, Sérgio. Alternativas ao uso de animais vivos na educação - pela ciência responsável. São Paulo: Instituto Nina Rosa, 2003.
INTERNICHE. From Guinea Pig to Computer Mouse. International Network for Humane Education, England: 2003.
LEVAI, Laerte Fernando. Direito dos Animais. Campos do Jordão: Ed. Mantiqueira, 2004.
LIMA, João Epifânio Regis. Vozes do Silêncio - Cultura Científica: ideologia e alienação no discurso sobre vivissecção. Tese de Mestrado. Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, 1995.
RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. Trad. Almiro Pisetta e Lenita Maria Rímolo Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
SINGER, Peter. Ética Prática. Trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo. Martins Fontes, 2006.
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Laerte Fernando Levai - laertelevai@uol.com.br
Integrante do Ministério Público do Estado de São Paulo, é promotor de Justiça em São José dos Campos, com atuação na área criminal, ambiental e defesa jurídica dos animais. Especialista em Bioética pela Universidade de São Paulo. Membro do Laboratório de Estudos sobre a Intolerância, da USP. Vice-presidente do Instituto Abolicionista Animal. Autor do livro "Direito dos Animais" (Editora Mantiqueira, 160 p.).

O Respeitavel público não quer animais em circos!

infosentiens
30/05/2010
O RESPEITÁVEL PÚBLICO NÃO QUER MAIS ANIMAIS EM CIRCOS!

Renata de Freitas Martins - renata@conjectura.com.br

INTRODUÇÃO

Atualmente estamos vivenciando um importantíssimo momento ético e legislativo em relação à presença de animais em espetáculos circenses.

Muitos os Estados e Municípios que atentaram para a questão, especialmente pelo crescente pleito da sociedade pelo fim da crueldade que a subsunção dos animais não-humanos aos animais humanos em circo significa. Atualmente são cinco os Estados que proíbem as apresentações, bem como mais de cinqüenta Municípios em todo o país.

Há ainda em tramitação projetos de leis em muitas cidades, alguns Estados, com destaque para a Bahia (PL 16.957/07, de autoria do deputado estadual Javier Alfaya) e também um de âmbito Federal, o PL 7291/06, tramitando atualmente na Comissão de Educação e Cultura da Câmara dos Deputados.

A aprovação dos citados projetos de lei é de suma importância, conforme pode-se depreender dos argumentos que apresentaremos a seguir.

ORIGENS DA UTILIZAÇÃO DE ANIMAIS EM CIRCOS

Segundo Antônio Torres, em seu História do circo no Brasil (Funarte, 1998), é possível que a arte circense tenha suas raízes na Grécia antiga e no Egito. Os espetáculos desse período tinham a forma de procissões, cujo objetivo era celebrar a volta da guerra. Nesses cortejos, desfilavam homens fortes conduzindo os vencidos, trazidos como escravos, e animais exóticos, utilizados para demonstrar quão longe foram os generais vencedores.

Há, ainda, registros da presença da arte circense na China, onde a acrobacia era bastante popular, datados de mais de 4 mil anos. Relatos dão conta de que os chineses organizavam um festival anual desse tipo de apresentação. Dele teriam se originado os números da corda bamba e do equilíbrio sobre as mãos.

Espetáculos semelhantes ganharam força no Império Romano com a apresentação de habilidades incomuns em grandes anfiteatros, como o Circo Máximo de Roma e, mais tarde, o Coliseu, que comportava quase cem mil espectadores. Fazia parte da diversão, além da exibição de habilidades, a exposição do raro, do excêntrico, do inusitado - como animais exóticos, homens louros nórdicos, engolidores de fogo, gladiadores, entre outras atrações. No período de perseguição ao cristianismo, as arenas foram ocupadas por espetáculos de violência, como a sangrenta entrega de cristãos a felinos.

Com o passar do tempo, o impulso por divertir foi tomando novas formas e ocupando diferentes espaços. Durante séculos, artistas se exibiram em feiras populares, praças públicas e entradas de igrejas, com truques mágicos, malabarismo e outras habilidades julgadas incomuns.

O circo moderno, na forma como conhecemos hoje, com espetáculos pagos, picadeiro, cobertura de lona e cercado de arquibancadas, é invenção mais recente. Foi criado em 1770, por Philip Astley, suboficial inglês que comandava apresentações da cavalaria. Em seu circo, além das atrações com cavalos, Astley incluiu saltimbancos e palhaços. O enorme sucesso do espetáculo em Londres inspirou a criação de apresentações semelhante em toda a Europa e para além dos limites do Velho Mundo.

Nos Estados Unidos, primeiro país das Américas a receber essa atração, o circo consolidou sua característica itinerante, ao viajar por distintas cidades para fazer apresentações. Também nos Estado Unidos, o espetáculo consagrou a apresentação do que se consideravam excentricidades - mulheres barbadas, anões, gigantes, gêmeos siameses, pessoas muito velhas e deformações humanas e animais.

No Brasil, há registro da existência de pequenos espetáculos circenses a partir do final do século XVIII, provavelmente trazidos por ciganos expulsos da Europa. Em suas apresentações, esses artistas utilizavam doma de animais, números de ilusionismo e até teatro de bonecos. O circo moderno, no entanto, só chegou ao país no século XIX. Incentivadas pelos ciclos econômicos do café, da borracha e da cana-de-açúcar, grandes companhias européias vieram apresentar-se nas cidades brasileiras. Foram essas companhias que ajudaram a formar as primeiras famílias de circo, responsáveis pelo progresso da arte circense no Brasil.

O desenvolvimento do circo brasileiro não se deu em termos de espaços e equipamentos - concentrou-se no elemento humano, na sua destreza e habilidade. Foram mantidos números clássicos, como o do engolidor de fogo ou o da corda bamba, e criadas novas atrações adaptadas à cultura local. Os nossos palhaços, por exemplo, sempre falaram muito e usaram um tipo de humor mais malicioso, diferentemente do palhaço europeu, que era, por tradição, um mímico. Os números perigosos como o trapézio ou a doma de animais também ganharam mais espaço por de certa forma agradar muito aos brasileiros, à época desprovidos de informações sobre doma, manutenção dos animais nos circos e afins.

O circo que conhecemos é, portanto, fruto da evolução da arte circense. Esse espetáculo tradicional, familiar, composto de palhaços, trapezistas, mágicos e domadores, que povoou a infância de muitos e ocupa espaço na memória nacional, passa, no presente, por novas mudanças, seguindo o seu curso de evolução.

O surgimento dos grandes centros urbanos, o desenvolvimento tecnológico, o crescimento da economia da cultura, a concorrência de novas formas de entretenimento levaram os espetáculos circenses a se profissionalizar e a se concentrar na performance dos artistas.

Nesse novo cenário, o conhecimento circense não se transmite somente de pai para filho - exige preparo em escolas especializadas. Hoje são poucos os circos que continuam familiares.

Muitos donos de empreendimentos circenses que atuaram nos picadeiros preferem zelar para que seus filhos estudem e permaneçam no circo não como artistas, mas como administradores. A mudança nos valores e no perfil da nossa sociedade, cada vez mais urbana, tem criado uma demanda mais sofisticada e mais cosmopolita para a arte. Para adaptar-se aos novos tempos, os circos já vêm incorporando tentativas de desenvolver um diferente tipo de espetáculo que envolva novas linguagens além das atrações tradicionais.

O circo contemporâneo - ou novo circo, como alguns historiadores o chamam - apresenta um modelo que prospera atualmente, conhecido como circo do homem, por envolver somente a figura humana nas performances, excluindo a participação de animais. Seu formato, ainda em processo de desenvolvimento, representa uma tentativa de adaptar as artes circenses às exigências do mercado artístico contemporâneo, de fazê-lo acessível a todos os públicos, respeitando os valores sociais, sem deixar de cumprir os objetivos primordiais do circo: proporcionar alegria, ilusão e fantasia, em favor do entretenimento. Vários circos internacionais, como o Cirque du Soleil, do Canadá, e o Circo Oz , da Austrália, adotam essa nova abordagem artística, que não admite o uso de animais, cedendo espaço para as performances humanas. No Brasil, muitos circo s orientam-se por essa concepção, como o Circo Popular do Brasil, a Intrépida Trupe, os Irmãos Brothers, o Circo Roda Brasil, o Teatro de Anônimos, entre tantos outros.

Esse novo modelo tem contribuído para a valorização do artista circense, criando um mercado promissor e altamente competitivo para esse profissional, com a remuneração associada à sua habilidade e ao grau de dificuldade da exibição.

MANUTENÇÃO E TREINAMENTOS DE ANIMAIS EM CIRCOS: GENERALIDADES

É sabido que os animais não humanos são dotados de sentimentos e instintos. Assim, como os animais ditos racionais, sentem dor, medo, angústia, stress, prazer, desprazer, tristeza, etc. São seres sencientes e que devem ter a mesma consideração à vida que qualquer outro ser vivo, pois estão todos em um mesmo patamar moral.

Nos circos, para que o animal se apresente manso e obediente, cada espécie é treinada de uma determinada forma a seguir explicitada:

ELEFANTES

"Como fazer para conseguir a atenção de um elefante de 5 toneladas. Surre-o. Eis como." (Saul Kitchener - diretor do San Francisco Zoological Gardens)

* Antes de chegarem no circo, passam por meses de tortura. São amarrados sentados, numa jaula onde não podem se mexer para que o peso comprima os órgãos internos e causem dor;

* Levam surras diárias, ficam sobre seus próprios excrementos até que passem a obedecer;

* Elefantes se comunicam, vivem em grupos com papéis sociais definidos, são extremamente inteligentes, ficam de luto por seus mortos e são capazes de reconhecer um familiar mesmo tendo sido separado dele quando filhote;

* Sofrem de problemas nas patas por falta de exercícios, pois na natureza elefantes andam milhares de quilômetros todos os dias;

* No circo os elefantes permanecem acorrentados o tempo inteiro. Mexer constantemente a cabeça é uma das características da neurose do cativeiro.

LEÕES, TIGRES E OUTRO FELINOS

* De acordo com Henry Ringling North, em seu livro "The Circus Kings", os grandes felinos são acorrentados a seus pedestais e as cordas são enroladas em suas gargantas para que tenham a sensação de estarem sendo sufocados;

* São dominados pelo fogo e pelo chicote, golpeados com barras de ferro e queimados na testa pelo menos uma vez na vida para que não esqueçam da dor;

* Muitos têm suas garras arrancadas e presas extraídas ou serradas;

* Passam a maior parte de sua vida dentro de jaulas apertadas.

URSOS

* Tem o nariz quebrado durante o treinamento;

* Suas patas são queimadas para força-los a ficar sobre duas patas;

* São obrigados a pisar em chapas de metal incandescente ao som de uma determinada música. No picadeiro, os ursos escutam a mesma música usada durante o "treinamento" e começam a se movimentar, dando a impressão de estarem dançando;

* Muitos tem garras e presas arrancadas. Já foi constatado um urso com 1/3 de sua língua arrancada;

* Alguns ursos se auto mutilam, batendo a cabeça nas grades e comendo suas próprias patas.

MACACOS

* Apresentam o mesmo comportamento de crianças que sofrem abusos;

* Até 98% do DNA dos chimpanzés é igual ao DNA humano;

* Apanham para obedecer e obedecem apenas por medo;

* Roer unhas e auto mutilação são comportamentos freqüentemente encontrados em macacos cativos;

* Os dentes são retirados para que o animal possa ser fotografado junto às crianças.

CAVALOS

* São açoitados e confinados sem direito a caminhadas;

* Apanham para aprender;

* Muitas vezes, por terem que fazer os números em pisos inadequados, especialmente escorregadios, acabam adquirindo lesões irreversíveis, com fortes dores.

TODOS OS ANIMAIS EM CIRCO

* Estão sujeitos aos instrumentos dos clássicos "treinamentos": choques elétricos, chicotadas, privação de água e comida;

* Ficam confinados sem a mínima condição de higiene, sujeitos a diversas doenças;

* O confinamento não lhes fornece o mínimo de condições de bem-estar, sendo, aliás, totalmente contrário à vida que teriam em seus habitats;

* Não têm assistência veterinária adequada;

* São obrigados a suportar mudanças climáticas bruscas e viajar milhares de quilômetros sem descanso.

Por estas razões é que diversas associações pelos direitos dos animais condenam e trabalham contra a presença de animais em circos, e esta atitude tem sido fomentada por grande parte do respeitável público circense, sendo que todos os fatos narrados podem ser comprovados por amplo material já produzido, especialmente no Brasil. Também incluiremos em tópico adiante alguns exemplos de acidentes já ocorridos, o que deixará ainda mais indubitável que lugar de animais não-humanos definitivamente não é em circos.

Com efeito, os animais obedecem não por índole, mas porque sentem dor, desespero, medo, raiva, aflição, insatisfação, incômodo, situações que, sem dúvidas são caracterizadas como crueldade e maus-tratos.

DOMESTICAÇÃO DE ANIMAIS SILVESTRES?

Animais silvestres ou selvagens são aqueles naturais de determinado país ou região, que vivem junto à natureza e dos meios que este lhes faculta, pelo que independem do homem.

Pois bem. Com esta definição de animais silvestres fica latente que a domesticação destes é algo totalmente anti-natural, e, portanto, é considerada maus tratos, já que para que esta existe, haverá que se retirar o animal de seu habitat natural, alterando-lhe toda uma estrutura de vida e costumes, podendo inclusive levar-lhes à morte.

Aliás, não apenas a retirada do animal de seu habitat que lhe trará malefícios, mas também, e, principalmente, os hábitos que o ser humano irá imputar-lhe, para que viva com essa nova "sociedade", portanto, mesmo que sejam originários da vida em cativeiro, as condições de vida que lhes são imputadas nada têm a ver com as necessidades que têm.

Em circos, normalmente os hábitos novos imputados aos animais são dos mais cruéis. Animais são forçados a realizar malabarismos e diversos outros números para entreter o público, porém, para que "aprendam" a fazer tudo que seus domadores desejam, sofrem demais.

Devemos finalmente ressaltar que, animais silvestres, apesar de em tese terem sido domesticados, podem revoltar-se, e então, ninguém será capaz de pará-los. Temos exemplos recentes de acontecimentos fatais por causa desta insistência de alguns circos em manterem animais em seus números, como a morte do garoto Juninho em Pernambuco, que fora puxado para dentro da jaula de leões famintos e lhes servindo de refeição, após três dias de total jejum.

Assim, é inquestionável que lugar de animal silvestre é na natureza, seu habitat natural, e que a diversão humana, sadia e inteligente, imprescinde do sofrimento de outrem, afinal de contas, artistas de circos sem animais são muito criativos, talentosos e capazes de entreter seu público. Nada como o bom e velho palhaço, os malabaristas, trapezistas e mágicos!

E OS ANIMAIS DOMÉSTICOS?

Também é comum encontrarmos animais domésticos, como cães, gatos e cavalos em apresentações de espetáculos públicos. Mas será que o simples fato de serem domésticos é permissivo para que seus tutores façam o que bem entenderem com eles?

Do mesmo modo que os animais silvestres nativos e exóticos, os domésticos indubitavelmente também possuem sua tutela legal e jurídica albergada por nossa legislação em vigor.

Ademais, de se ressaltar que animais domésticos são seres especialmente de companhia e não devem ser submetidos a longas jornadas de treinamento e trabalho, sendo obrigados a realizar atividades totalmente contrárias à sua natureza, bem como estando expostos a músicas em altos sons, gritaria e afins (lembrando-se que a audição dos animais é extremamente mais sensível e potente que a dos humanos. O cavalo, por exemplo, possui uma acuidade auricular quatro vezes melhor que a dos humanos).

De se ressaltar ainda que um animal só aprende determinado procedimento após repeti-lo incontáveis vezes, por reflexos condicionados, e, portanto, mesmo se tratando de um animal doméstico, não há nada natural em se forçar um cão a ficar constantemente apoiado apenas em duas patas ou então que um gato pule de uma altura de 20 metros ou ainda um cavalo dando pinotes em minúsculos palcos escorregadios, por exemplo.

Finalmente, não poderíamos deixar de citar os danos físicos que acometem os animais domésticos, que chegam até mesmo a pagar com suas próprias vidas para realizarem algum número forçado por seus "treinadores", ou ainda pelas condições lastimáveis em que são mantidos, em espaços minúsculos e sem higiene, propensos a adquirirem inúmeras doenças e em notório estado de maus tratos.

ILEGALIDADE E INCONSTITUCIONALIDADE

Além de legislação específica já em vigor em determinados locais, conforme já citamos, devemos também atentar que nossa legislação ambiental alberga a tutela dos animais, inclusive todos aqueles utilizados em circos.

A Constituição da República, no capítulo do Meio Ambiente, assim dispõe:

"Art. 225 - Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

§ 1° - Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:

(...)

VII - proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais à crueldade."

Importantíssimo ainda a tutela aos animais albergada pelo Decreto Federal 24.645/1934:

"Art. 1° - Todos os animais no país são tutelados do Estado.

Art. 2°, § 3°: Os animais serão assistidos em juízo pelos representantes do Ministério Público, seus substitutos legais e pelos membros das sociedades protetoras dos animais.

Citado decreto, inclusive, já proíbe a apresentação de animais em circos desde o ano de 1934, conforme podemos depreender de seu artigo 3º, que em rol exemplificativo traz situações que tipificam situações de maus tratos, e especialmente em seu inciso XXX, assim considera a exibição de animais em casas de espetáculos para a realização de acrobacias, ou seja, exatamente as atividades praticadas por circos.

Já a Lei de Crimes Ambientais (Lei federal n° 9.605/1998), finalmente, contempla o seguinte tipo:

"Art. 32 - Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos."

Assim, devemos ressaltar que a proteção de todos os animais está albergada em nossa legislação, sendo crime qualquer ato que prejudique o animal, seja ele um cão poodle, um cavalo ou animais exóticos utilizados em apresentações circenses (elefante, urso, camelo).

E não obstante a questão legal abordada, a preservação da VIDA, seja ela de qual forma for, há que prevalecer como objetivo primordial e essencial na consciência e ética humana e ambiental. O ser humano deve alcançar a tão necessária evolução e parar definitivamente com a arcaica e irracional exploração de animais, tornando-se finalmente um ser racional, condição da qual tanto se orgulha de ostentar.

DOS DISPOSITIVOS DO IBAMA A RESPEITO DE ANIMAIS EXÓTICOS EM CIRCOS

Mister também ressaltarmos que, mesmo que se considerasse a possibilidade de manutenção de animais em circos, os animais presentes atualmente em circos de modo algum poderiam estar atualmente sob a tutela dos circenses, tendo em vista que é notório a qualquer leigo a falta de condições adequadas para a dignidade destes animais.

Conforme portaria IBAMA n.º 108/94, que regulamenta a manutenção de algumas espécies de animais exóticos por pessoas físicas ou jurídicas, dentre elas, aqueles mais comuns mantidos por circos como o Ursus arctus (urso pardo), o Elephas maximus (elefante asiático), o Panthera leo (leão) e o Panthera tigris (tigre), algumas exigências devem ser atendidas. As principais são:

- assistência permanente de pelo menos um médico veterinário;

- que o animal seja sexado e marcado (leia-se microchipado);

- apresentação de relatório anual (atualmente também com relatórios resumidos trimestrais a serem apresentados via internet);

- proibição de visitação pública;

- recinto nos mínimos padrões exigidos:

Urso

Área - 100 m² / 600 m³ (se arbícola)

Abrigo - 15 m²

Tanque - 15 m² / 2m profundidade

Área de Cambiamento - 10 m²

Piso - camada de terra 2,0 sem concreto.


Elefante (Proboscidae)

Área - 1000

Tanque - 100 m² / 3m profundidade

Área de Cambiamento - 2 x 50 m², altura mínima de 100 m

Piso - areia/terra, sem concreto

Especificidade: cambiamento em concreto. Portas de trilho reforçado.


Leão e Tigre

Área - 60 m² / 150 m³

Abrigoo - 15 m²

Área de Cambiamento - 3 x 6 m²

Piso - areia/terra, sem cimento

Tanque: 10 m² / 1,0 m profundidade.

Além das regras citadas, o transporte desses animais apenas poderá ser feito com a obtenção das respectivas guias de transporte (GTA), estando os animais com todas vacinações em dia, bem como com estado de saúde totalmente perfeito.

Importante também lembrar que é proibido no país a entrada de espécie exótica sem as devidas autorizações (artigo 31 da Lei de crimes ambientais), e, portanto, mesmo que filhotes tenham nascido no país, necessário comprovar-se a origem dos animais, bem como de todos seus ascedentes, pois a existência de ao menos um único animal que tenha entrado no país de forma ilegal, já enseja a ilegalidade de todos os seus descendentes.

Portanto, sem necessidade de conhecimento técnico algum, apenas pela simples observação, é notório que algumas das normas basilares para se tutelar os animais não são observadas minimamente pelo circo, especialmente no que se refere à questão de visitação pública e de padrões mínimos de recintos.

ALGUNS FATOS OCORRIDOS EM CIRCOS COM ANIMAIS NO BRASIL

São muitos os acidentes com animais em circos, prejudicando os próprios animais, bem como seus tratadores, outros componentes dos circos, o público e a população em geral. Para não nos tornarmos muito prolixos, selecionamos apenas alguns dos fatos para exposição a seguir, apenas a título de mera exemplificação prática:

- Bady Bassit/São José do Rio Preto/SP, abril de 2008: leão solto por circo causa pânico na região;

- Mata de São João/BA, dezembro de 2007: macaco arranca parte do dedo de uma menina de 3 anos. Animal fica em jaula improvisada em carrinho de supermercado;

- Cuiabá/MT, dezembro de 2007: leão pula muro e foge de circo;

- Vitória/ES, outubro de 2007: mulher tem braço amputado após mordida de leão de circo que tentou acariciar.

- Palhoça/SC, maio de 2006: elefante foge de circo;

- Itaboraí/RJ, fevereiro de 2006: leão é encontrado em jaula aberta escorada apenas com uma tábua em frigorífico abandonado;

- Uberaba/MG, dezembro de 2005: 5 leões são abandonados por circo m estrada;

- Ervália/MG, julho de 2005: macaca chimpanzé arranca dedo mínimo de criança de 12 anos que estava em circo que se apresentava na cidade;

- Campos do Jordão/SP, julho de 2005: dois tigres morrem no circo Stankowich. A priori afirmou-se que fora de frio, porém, após, em laudo feito por veterinário do circo, ficou constatada morte por vírus transmitido por gato doméstico, o que no sugere a ingestão de animais domésticos pelos animais do citado circo, já que representantes do circo tentaram descartar o cadáver de um dos animais, abrindo-lhe e queimando as vísceras, inclusive.

- Restinga Seca/RS, junho/2005: criança de oito anos sofreu ferimentos ao encostar em grade de leão, o qual acabou sendo executado com choque elétrico, por meio de aparelho para este fim portado por seu treinador;

- Lavras do Sul/RS, maio/2005: homem é atacado por um tigre de circo, tendo seu braço esquerdo amputado;

- São Paulo/SP, fevereiro de 2005: chimpanzé Dolores, após ter sido retirada do circo Di Napoli pelo IBAMA, estando depressiva e com bronquite crônica, finalmente é encaminhada para um santuário após decisão judicial;

- Antônio Carlos, Florianópolis/SC, julho de 2004: dois leões e dois tigres são apreendidos em um circo, após serem encontrados desnutridos e em jaulas soldadas;

- Curitiba/PR, junho de 2004: IBAMA precisa encontrar um novo lar para 2 leões que estavam com um particular e não têm mais condições de mantê-los. Animais nascidos em circo;

- Iguaraci/PE, abril de 2004: o urso pardo Bruno, maltratado e desnutrido é simplesmente abandonado por circo no sertão do Pernambuco;

- Penha/SC, março de 2004: morre gato em conseqüência de queda na apresentação do número "pulo do gato" em circo em Santa Catarina;

- Aparecida de Goiânia/GO, dezembro de 2003: tigresa da espécie real de bengala ataca tratador, mordendo antebraço e bíceps do rapaz, o qual teve sérios ferimentos, tendo que ser submetido a cirurgia para tentar recuperar os movimentos;

- São Paulo/SP: Bambi, elefanta presente no circo Stankowich escapa para a Radial Leste em pleno horário de rush;

- Penha/SC, outubro de 2003: morre Madú, elefanta que viveu anos em um circo e passou o final de sua vida em um outro circo em Santa Catarina. No laudo atestava-se que a elefanta morreu com um raio na cabeça, apesar de ter vivido ao redor de uma cerca eletrificada e de diversas testemunhas terem presenciado sua cruel morte por eletrocussão;

- Sumaré/SP, janeiro de 2003: circo Stankowich abandona três leões no centro da cidade de Sumaré/SP, alegando não querê-los mais. Os animais foram encaminhados em estado lastimável de saúde para o Santuário Ecológico Rancho dos Gnomos, sendo que um dos animais estava tão debilitado, que veio a óbito;

- Maracanaú/CE, dezembro de 2001: leoa morta a tiros depois de escapar em circo no Ceará;

- Curitiba/PR, agosto de 2001: trapezista do circo imperial do México teve que amputar braço após ter sido atacado por leoa;

- Atibaia/SP, abril de 2000: circo Bartholo abandona 3 leões e 1 leoa em terreno baldio;

- Recife/PE, abril de 2000: leões matam garoto. Quatro leões famintos do circo Vostok puxam o garoto Juninho para dentro da jaula no intervalo da apresentação do espetáculo circense. Garoto tem uma morte trágica e cruel e os animais são todos mortos. Em exame necroscópico, há a constatação de que os animais não comiam há dias.

CONCLUSÕES

Os legisladores baianos, bem como os federais deverão atentar-se que o circo contemporâneo apresenta um modelo que prospera atualmente, conhecido como circo do homem, por envolver somente a figura humana nas performances, excluindo a participação de animais.

Além disso, a utilização de animais não humanos para tentativa de atraçãode um suposto público é uma ultrapassada e falidaestratégia de marketing, tendo em vista que o anseio da sociedade moderna há tempos vem evoluindo, de modo que não mais aceitam o tratamento de animais não-humanos como se meros objetos fossem, além de se ressaltar que já se trata de atividade ilegal e inconstitucional, conforme rol legislativo já citado e pela indubitável crueldade que tal ato significa.

Também não há que se falar em educação, arte e cultura na apresentação de animais em situações totalmente estranhas às suas naturezas, além de toda uma vida submetida às jaulas e à itinerância, sob todo tipo de intempérie climática. Educação, arte e cultura não são feitas e nunca o serão por meio da exploração de qualquer forma de vida que seja, pois caso contrário teríamos um enorme contra-senso. Qual seria a lição a se transmitir a uma criança ao fazê-la ver um elefante subindo em um banquinho? Ou um leão e um tigre pulando um arco de fogo? Ou ainda um urso dançando ou andando de bicicleta? Um gato pulando de uma altura de dez metros e se espatifando no chão? Não vejo outra a não ser a de que animais seriam seres inferiores e que o humano ("todo-poderoso") pode dominá-lo e fazer o que quiser...

Assim, roga-se que legisladores tenham uma atuação ética e não antropocêntrica, coadunando-se com as tendências mundiais morais globais, e finalmente votando e aprovando o PL do Estado da Bahia 16.957/07 e o PL federal 7291/06, proibindo-se a apresentação e manutenção de quaisquer animais não-humanos nos circos e espetáculos assemelhados.

E que o respeitável público ostente mesmo esse título de respeitável e continue evoluindo em seus conceitos éticos, morais e legais, não aceitando a crueldade como cultura e arte.

segunda-feira, 10 de maio de 2010

Os animais tem direitos!


















Por que animais têm direitos?
Bruno Müller


Introdução

Se eu perguntar a alguém: "porque não devo queimar seu braço com ferro em brasa?", o que me responderia essa pessoa? Diria ela: "por que eu sou inteligente"? Ou diria "porque eu tenho grande habilidade de comunicação"? Ou ainda "porque existe um acordo tácito entre nós para que não causemos dano um ao outro"? Investigar essa pergunta talvez seja uma forma simples de resumir os argumentos em favor dos direitos animais.

Muitos vegetarianos têm a convicção de que animais têm direitos e que o respeito a esses direitos comanda que nos abstenhamos de comê-los. Entretanto, essa convicção muitas vezes não é acompanhada da reflexão filosófica necessária para respaldá-la. Isso é um problema, pois o raciocínio lógico e a força do argumento racional são fundamentais para difundir os direitos animais e convencer a maioria dos interlocutores. Por isso é importante que os ativistas da causa animal tenham clareza na hora de abordar essa questão fundadora: por que animais têm direitos?

Ao tratarmos dela, é fundamental que, em primeiro lugar, não a tomemos como senso comum. Na minha opinião, todo diálogo sobre veganismo e direitos animais deve começar com ela. As bases do pensamento que advogamos, como defensores dos direitos animais, infelizmente, nem sempre estão claras mesmo para os que os defendem. Que dirá para os demais. Mesmo ativistas dedicados têm dificuldade de entender essas questões - o que é um problema grave, pois a falta de conhecimento pode levar à incoerência nas ações e à confusão no discurso, reduzindo significativamente a força e a eficácia do ativismo pelos animais. Para defender nossos princípios, o primeiro passo é buscar compreender aquilo que fundamenta nossas escolhas éticas.

Para começarmos a falar de por que animais têm direitos, sugiro começarmos pelo caminho contrário: os pensamentos por trás daqueles que defendem que animais não têm direitos.

Por que Animais Não Têm Direitos?

Nessa discussão vejo duas linhas de raciocínio básicas: uma do direito, outra da biologia. Então vamos a cada uma delas.

1. A objeção do direito

Existem duas vertentes do direito que são relevantes para o debate da questão dos direitos animais: o direito moral e o direito legal. Os que defendem que animais não têm direitos, em geral, rejeitam tal atribuição de direitos em função de uma visão de direitos baseada em direitos legais.

Essa visão que nega direitos aos animais não-humanos é baseada numa leitura contratualista conservadora, que afirma que só têm direitos aqueles indivíduos que também têm deveres. Os direitos e deveres são firmados por meio de um contrato - logo, só tem direitos quem for capaz de firmar contratos. Direito, nessa concepção, é um benefício que o indivíduo obtém em troca de um compromisso, pelo qual ele está obrigado a oferecer, em troca, algum outro benefício, através do qual se garante, assim, o convívio harmonioso e pacífico e, em última instância, a sobrevivência e prosperidade de toda a sociedade. Essa teoria contratualista do direito está toda fundada na filosofia de Thomas Hobbes e sua obra O Leviatã, de 1652.

Aparentemente muito lógica, essa filosofia hobbesiana tem dois problemas muito básicos. O primeiro deles, de ordem ética e moral, é que, longe de garantir direitos, ela exclui grande parte dos indivíduos humanos da comunidade de direitos. O contratualismo hobbesiano condiciona a ética à política - ou seja, a lei determina o que é ético e o que não é - mesmo no caso em que uma lei pareça injusta. Entre indivíduos que não podem assinar contratos e não podem, portanto, contrair obrigações, podemos incluir: recém-nascidos, crianças, comatosos, pessoas com certos tipos de enfermidade e problemas de ordem neurológica. Subscrever o contratualismo hobbesiano é, portanto, um convite à barbárie - e isso já fora descoberto há muito tempo, e por outros contratualistas: John Locke, no Segundo Tratado sobre o Governo, de 1690, afirmava que o estado de natureza (a ausência de governo) era melhor que o Estado absolutista defendido por Hobbes. Jean-Jacques Rousseau, no Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens, de 1755, deixa claro que a capacidade de firmar contratos não encerra a questão dos direitos morais, incorporando, inclusive, os animais às suas considerações. Vale a pena citarmos um trecho em particular:

Dessa maneira, não se é obrigado a fazer do homem um filósofo, em lugar de fazer dele um homem; seus deveres para com outrem não lhe são ditados unicamente pelas tardias lições da sabedoria; e, enquanto não resistir ao impulso interior da comiseração, jamais fará mal a outro homem, nem mesmo a nenhum ser sensível, exceto no caso legítimo em que, achando-se a conservação interessada, é obrigado a dar preferência a si mesmo. Por esse meio, terminam também as antigas disputas sobre a participação dos animais na lei natural; porque é claro que, desprovidos de luz e de liberdade , não podem reconhecer essa lei; mas, unidos de algum modo à nossa natureza pela sensibilidade de que são dotados, julgar-se-á que devem também participar do direito natural e que o homem está obrigado, para com eles, a certa espécie de deveres. Parece, com efeito, que, se sou obrigado a não fazer nenhum mal a meu semelhante, é menos porque ele é um ser racional do que porque é um ser sensível (...). (ROUSSEAU, J.-J. Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens. São Paulo: Martin Claret, 2005, pp. 28-9 [grifo meu]).

Thomas Paine, em Direitos do Homem, de 1792, declarou que o contrato social não dava aos contratantes o direito de escravizar, dominar ou fazer guerra contra pessoas fora do contrato.

O segundo problema, de ordem prática, decorre do primeiro. Felizmente, na maioria das sociedades, e para a maioria dos indivíduos humanos, não é mais o contratualismo hobbesiano que orienta o direito legal. Este avançou, na maioria dos países - ao menos nominalmente - para um contratualismo rousseauniano, que reconhece direitos morais a todos os seres humanos que sejam portadores da nacionalidade de um determinado país. Todos os indivíduos descritos no parágrafo acima contam, hoje, com garantias para preservar seus interesses básicos à vida, liberdade e integridade física assegurados na Constituição de seus países - estes não estão mais atrelados ao exercício pleno e consciente da cidadania.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas, subscrita pela grande maiore dos Estados, não faz distinção de nenhum tipo entre seres humanos, e afirma textualmente que os direitos humanos são universais, imprescritíveis, intransferíveis. Os estrangeiros, no entanto, especialmente imigrantes, nem sempre têm seus direitos humanos garantidos por lei, como podemos constatar pelos debates dentro da União Européia. Isso se deve a questões políticas e ao alcance das leis nacionais, que por definição excluem os estrangeiros. Mas também nesse terreno tem havido avanços significativos na produção de um direito cosmopolita, que não reconhece barreiras nacionais, como se vê pela prisão do ditador chileno Augusto Pinochet, na Grã-Bretanha, a pedido de um juiz espanhol, em 1998, sob acusação de violações dos direitos humanos durante a ditadura militar que comandou no Chile. Pode-se ainda argumentar que, na prática, todos os países desrespeitam sistematicamente os direitos humanos - o que é verdade. No entanto, esses direitos são reconhecidos, o que é um diferencial fundamental, pois fornece instrumentos legais para lutar contra violações dos direitos morais praticados nesses países.

Essa discussão está longe de ser esgotada. Afinal, nossa sociedade ainda funciona sob um marco jurídico em que nem sempre a ética e política coincidem, de modo que, num embate entre ambos, sempre irá prevalecer aquilo que é legalmente justo, mesmo que seja eticamente condenável. Apenas quando o direito legal e o direito moral coincidirem plenamente os direitos animais - e os direitos humanos - serão efetivamente respeitados e promovidos.

De qualquer modo, podemos concluir que, mesmo dentre os contratualistas, a abordagem conservadora e autoritária de Hobbes está, há muito, ultrapassada. Que ainda haja quem subscreva suas teses é um sinal de ignorância ou de hipocrisia. Mesmo a visão jurídica predominante nos dias de hoje admite que nem todo direito é um benefício obtido em troca de uma obrigação. Alguns direitos - os direitos fundamentais - são direitos inerentes, ou seja, garantias que devem ser respeitadas, independente de obrigações anteriores ou posteriores, única e exclusivamente em função das característas próprias - inerentes - do portador desses direitos. Animais não-humanos não têm esse reconhecimento legal de seus direitos morais devido à tradição e ao especismo, e não em função de algum atributo básico que lhes falta para serem considerados membros da comunidade moral. A característica básica que faz com que todos os seres humanos sejam portadores de direito, os animais não-humanos também possuem - a sensibilidade descrita por Rousseau, que nós hoje chamamos de senciência, a qual vamos abordar detalhadamente mais adiante.

2. A objeção da biologia

A objeção da biologia, como veremos, logo se confunde com a objeção do direito. Seu patrono é o filósofo francês René Descartes (1596-1650), e se funda basicamente em dois argumentos: animais são seres autômatos, desprovidos de sensações e sentimentos; e animais são desprovidos de razão e linguagem que lhes possibilite elaborar conceitos e exprimir desejos. Como só seres humanos são portadores dessas características, apenas eles são portadores de direitos, pois apenas para eles a vida, a liberdade e a integridade física e psíquica são um bem precioso. Animais não têm interesse particular em continuar vivendo, nem em serem protegidos do sofrimento físico (pois suas respostas a estímulos externos são mecânicas, e o sofrimento envolve uma elaboração mental que exige uma racionalidade que lhes falta) nem em serem livres (pois não têm um "conceito" de liberdade).

As objeções de ordem biológica também têm dois problemas primordiais. Em primeiro lugar, a tese cartesiana é falsa porque sua própria premissa é falsa. A linguagem não é pré-requisito para ser consciente. Fosse assim, seres humanos já nasceriam falando, ou jamais aprenderiam a falar, não nascendo com esta faculdade. Afinal, é preciso, primeiro, ter consciência de um objeto para, depois, dar-lhe um nome.

Nós protegemos seres humanos que não são dotados de pleno domínio da razão e da linguagem - aqueles que são conhecidos como "seres humanos paradigmáticos" - recém-nascidos, cujos pensamentos e desejos nos são um completo mistério; crianças, que não têm suas faculdades de raciocínio e linguagem plenamente desenvolvidas, razão pela qual, aliás, elas não podem votar; pessoas em coma ou portadoras de problemas neurológicos, temporários ou permanentes, que comprometam sua racionalidade e capacidade de comunicação. Há algum outro fator, fundamental, que faça com que estes seres humanos sejam reconhecidos como sujeitos de direitos e respeitados como tal. Assim como Hobbes para o direito, se a tese de Descartes fosse ainda tida como valida, pela biologia, estes seres humanos seriam vistos apenas como objetos.

Em segundo lugar, a tese cartesiana é falsa porque suas conclusões sobre os animais não-humanos também é falsa. Hoje em dia, nenhuma pessoa com algum conhecimento ou experiência pode, seriamente, alegar que animais são autômatos desprovidos da capacidade de sentir dor. Aqui também, as críticas não tardaram muito a aparecer. O filósofo iluminista François-Marie Voltaire (1694-1778), já no século XVIII, ridicularizou a tese cartesiana. Disse ele: "Responda-me, mecanicista: organizou a natureza todas as fontes do sentimeno nesse animal com o propósito de que ele nada possa sentir? Tem ele nervos a fim de que se torne incapaz de sofrer?" O nosso conhecimento atual sobre os animais evoluiu tanto que sequer podemos seriamente discordar que eles são dotados de raciocínio, de linguagem - muitas delas extremamente complexas, como no caso de baleias e elefantes - , de sentimentos, e que eles têm desejos e, portanto, interesse em ser livres - do contrário eles não buscariam conscientemente evitar situações dolorosas e não perseguiriam situações que foram fonte de prazer no passado.

Por que então, se não por pura hipocrisia, exigir-se-ia dos animais, para serem portadores de direitos fundamentais, critérios e pré-requisitos que não são exigidos dos seres humanos? Trata-se de uma diferença de tratamento irracional - eles, que gostam tanto de apresentar-se como guardiães da razão -, sem fundamento, e baseada, portanto, unicamente no preconceito. Preconceito contra as espécies diferentes da nossa, que, conforme definido por Richard Ryder em 1975, hoje conhecemos como especismo.

Vejamos, então, porque a questão deve ser abordada de outro modo: responder, por que, afinal, animais têm direitos.

Por que Animais Têm Direitos?

Qual é, então, o critério lógico e racional para atribuir direitos fundamentais a um indivíduo? Por que sua vida, sua liberdade e sua integridade devem ser respeitadas? Na verdade, a pista para a resposta já foi dada anteriormente, logo no primeiro parágrafo desse texto.

Retomando-o: se eu perguntar a alguém: "por que não devo queimar seu braço com ferro em brasa?", ela não me responderia "porque eu sou inteligente", ou "porque eu tenho grande habilidade de comunicação", ou ainda "porque existe um acordo tácito entre nós para que não causemos dano um ao outro". Nem racionalmente, nem instintivamente, essas respostas poderiam ser consideradas corretas. A inteligência ou a habilidade de comunicação não são características relevantes para avaliar o dano que uma queimadura é capaz de provocar num ser humano. Afinal, a queimadura não irá afetar nenhuma dessas duas características. Tampouco a resposta contratualista é satisfatória. Ela responde muito mais o "como" do que o "porquê". Ela não diz o que há de errado na ação acima descrita, nem o motivo pelo qual é um erro queimar o braço de alguém, muito menos explica porque seres humanos fora do contrato também são protegidos contra esse tipo de agressão. O contrato é, tão somente, o meio que encontramos (dentro dessa teoria) para nos proteger de tal situação. Portanto, o contratualismo não dá conta da complexidade nem das raízes materiais dos nossos valores morais.

A resposta correta para a pergunta acima é: "porque irá me causar dor e danos físicos, o que por sua vez irá me causar sofrimento e comprometer a qualidade da minha vida". Claro está, portanto, que a inteligência, a fala ou a capacidade de firmar contratos não podem ser usadas como parâmetro para avaliar eticamente ações que comprometam a vida de outros seres - além das limitações, vistas acima, na capacidade dessas respostas darem conta do respeito que prezamos por todos os seres humanos, tanto em nossos valores quanto em nossas leis.

Em resumo, o dano que causamos ao tirar a vida ou comprometer a integridade de outro ser não é conseqüência da sua capacidade intelectual. Devemos proteger aqueles seres que, por sua vulnerabilidade, são dotados da capacidade de sofrer - um sofrimento que é físico e psíquico. Em outras palavras, têm direitos fundamentais aqueles indivíduos que são seres sencientes - seres capazes de sentir dor e prazer.

Senciência é um mecanismo de defesa típico do mundo animal, que serve como um alerta para situações potencialmente nocivas à vida do indivíduo. Ao desencadear-se o mecanismo da dor, o indivíduo protege-se, afasta-se da fonte da dor, para preservar sua vida. Este ato é muitas vezes instintivo - mesmo num ser humano. Ao retirar a mão do fogo, por exemplo, o ser humano reage antes de seu cérebro interpretar o estímulo racionalmente. Se nos fosse necessário compreender o que é fogo antes de nos protegermos dele, estaríamos arriscando nossa vida. Por outro lado, tampouco nos animais não-humanos a resposta ao perigo é meramente instintiva. A capacidade de interpretar é fundamental. Pensemos em gazelas, búfalos, zebras e outros animais que são presas de animais carnívoros: eles precisam interpretar os sinais da aproximação do predador - cheiros, sons, imagens - antes de estarem diante dos mesmos, caso contrário estariam em séria desvantagem; da mesma forma os predadores precisam interpretar cheiros, sons, imagens para localizar as presas e aproximarem-se sem ser notados. Se pensarmos nas plantas, entenderemos que elas não são dotadas de senciência. Seria inútil, para um ser que vive fixado à terra, sentir dor. Os animais, por outro lado, são sencientes justamente porque sua capacidade de locomover-se faz com que precisem de mecanismos para buscar e obter seus meios de sobreviência, e fugir das ameaças à sua vida. A decorrência lógica do conceito de senciência é, portanto, que todo ser senciente tem interesse na vida e na liberdade e integridade física e psíquica.

Além disso, a vida, a liberdade e a integridade física e psíquica não são apenas atributos a que o animal tem interesse, mas são atributos do interesse do animal, ou seja, mesmo que ele não se dê conta disso, a perda de cada um deles acarreta-lhes um dano irreparável. Para os seres sencientes, a morte é um dano irreparável, pois significa a aniquilação de sua consciência e a cessação de todas as sensações e experiências que lhe produzem bem-estar. A perda da liberdade é um dano irreparável porque a liberdade é condição para viver de forma autônoma - logo, condição para a própria vida. Sem liberdade, o ser senciente está vulnerável, pois está limitado na sua capacidade de buscar sua sobrevivência e proteger-se daquilo ameaça sua vida. Torna-se dependente de outros indivíduos para manter-se vivo, e torna-se incapaz de buscar o que lhe proporciona bem-estar. A violação da integridade física ou psíquica é um dano irreparável porque representa, além do risco de perder a vida, um sofrimento inestimável.

Sem liberdade e sem integridade física e psíquica, a vida do ser senciente, se não estiver encerrada, será uma vida limitada, e portanto fonte de sofrimento. De que adianta a um ser senciente viver enjaulado, incapaz de expressar livremente sua natureza e perseguir seus interesses? Pergunte isso a ser humano e você entenderá - o mesmo acontece com os animais não-humanos; prisioneiros, reduzidos a propriedades dos seres humanos, eles não podem ser eles mesmos, portanto têm uma vida pela metade. Não é portanto sem razão o ditado que afirma que, sem liberdade, a vida é uma dádiva inútil.

Conclusão

Estes são, portanto, os direitos que preconizamos para os animais não-humanos, pois são aqueles que decorrem de sua natureza senciente - natureza a qual eles partilham conosco, seres humanos. Não queremos que animais não-humanos tenham direito ao voto, ou à educação, pois estes não fariam nenhum sentido para eles. Os direitos fundamentais que queremos estender para todos os animais foram aqueles consagrados como os direitos humanos de primeira geração - os direitos à vida, à liberdade e à integridade física e psíquica. Nós defendemos que esses direitos não são exclusivamente humanos. São direitos animais. Os direitos animais são assim chamados porque são direitos morais que são relevantes não apenas para seres humanos, mas para todos os animais. Isso porque são direitos que se referem a interesses básicos, resultantes da própria manifestação da natureza do indivíduo - pois, em condições ideais, todos os seres sencientes nascem livres e só sobrevivem se estiverem física e psiquicamente íntegros.

Esses direitos geram deveres negativos - afinal, se resultam de atributos naturais do indivíduo, não devemos interferir nos bens que são do interesse do indivíduo em decorrência dessa natureza (daí também o conceito, hoje um tanto obsoleto, de direito natural). Mas geram também deveres positivos - esses direitos devem ser protegidos e promovidos pela sociedade, e reparados se uma vez violados. No que se refere aos animais não-humanos, devemos evitar todo dano que possa ser infligido contra eles e reparar todo dano que possa ser evitado. Uma vez que seus direitos morais já são, infelizmente, sistematicamente violados, para garantir esses direitos, precisamos, acima de tudo, deixar de fazer uma série de coisas: deixar de usá-los como objetos e propriedade, deixar de explorá-los, deixar de criá-los artificialmente, deixar de caçá-los, deixar de usarmos os subprodutos da sua exploração. Mas também temos deveres positivos: lutar por mudanças; despertar consciências; promover o respeito aos animais não-humanos, enquanto indivíduos (e não apenas como membros de uma espécie); preservar o meio ambiente em que eles vivem; reparar, na medida do possível, os danos que lhes causamos em função da exploração deles e da natureza. Em outras palavras, nosso primeiro e principal dever perante os animais não-humanos é: sermos VEGANOS.

botao_japublicadoTexto já publicado.

Bruno Müller

Bruno Müller
bfmuller@gmail.


Bacharel em História pelo Universidade Federal do Rio de Janeiro, mestre em Relações Internacionais pela Universidade Federal Fluminense, doutorando em História das Relações Internacionais pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Tradutor ocasional de textos acadêmicos (inglês-português). Editor de blogs da Agência Nacional de Direitos Animais. Vegetariano há mais de 20 anos, vegano e ativista independente desde 2007, na cidade do Rio de Janeiro, onde ministra palestras e faz ações de conscientização em prol dos direitos animais.

Pensata Animal nº 23 - Maio de 2009 - www.pensataanimal.net

quinta-feira, 6 de maio de 2010

comer carne é cultural?

COMER CARNE É CULTURAL, por Luis Felipe Valle

Sujeitar os animais a situações incrivelmente horrorosas usando como justificativas fatores “biológicos”, “evolutivos”, e “nutricionais” é tão válido cientificamente quanto os argumentos que justificaram por séculos (e ainda persistem em alguns lugares) a escravidão dos negros, a perseguição aos judeus, a descriminação das mulheres, a proibição religiosa da doação de órgãos, medula, transfusão de sangue, métodos contraceptivos, etc...

Comer carne é cultural. Dá ao ser humano, que antes era limitado ao branco, europeu, rico (tudo no masculino), a sensação de controlar as outras espécies que compartilham a vida neste planeta. A mesma sensação que sustenta os fanatismos religiosos, a opressão de regimes absolutistas e surtos de histeria coletiva que acabam em manchetes sangrentas e escandalosas no nosso dia-a-dia de banalização moral.

O corpo humano foi desenvolvido para alimentar-se de praticamente tudo que existe no planeta. Isso é adaptação. Significa que se um ser humano precisar matar e alimentar-se de outro para sobreviver, será possível. Possível, não necessário. Em certas culturas isso é cotidiano. Tem sentido próprio e reconhece que a fisiologia humana é muito mais adaptada a dietas vegetarianas (faça a comparação entre as mandíbulas, intestinos, PH estomacal, mãos, faro, glândulas digestoras e hábitos sociais de um leão e de um cavalo).

Comer carne não se limita a comer carne. Seria como concordar com as profecias bíblicas que condenam 90% dos costumes ocidentais e sair por aí matando em nome de Deus, dizendo que não se trata de assassinato, mas de “fé”.

Aliás, deixar de comer carne também é cultural. Em grande parte dos lugares onde não existe o hábito de alimentar-se de animais mortos (ou vivos), existe um surpreendente teor de consciência ecológica e respeito à vida. Em outros lugares, como é o caso do Brasil (o maior exportador de carne de todo o mundo), vai ser difícil alcançar esse nível, mas ele não é necessário, porque a outra parte de não comer carne trata-se mais de inteligência do que de cultura.

Enquanto ficamos por aí debatendo sobre a reforma agrária, as invasões do MST, o latifundiarismo, a miséria, a fome, a subnutrição, a devastação das florestas, as queimadas, a concentração de renda, a capitalização internacional de riquezas e o descaso com o meio ambiente, esquecemos de que o consumo de carne está por trás disso

A população bovina no Brasil (cerca de 200mi) é maior que a população humana (cerca de 190mi), isso sem contar as aves, suínos e caprinos “cultivados” para corte. Os cereais usados para alimentar este rebanho colossal seria mais do que suficiente para alimentar a população humana da América Latina. Os pastos usados tanto na criação de gado de corte quanto no cultivo agrícola para alimentá-los seriam mais do que o necessário para garantir que todo brasileiro tivesse um pedaço considerável de terra para morar – ou continuariam a exercer seu vital papel no equilíbrio ambiental do planeta como florestas tropicais.

Da água doce que se encontra disponível para uso do ser humano no planeta (menos de 0,03% da água superficial da Terra), 80% é usada para fins agrícolas. Escovar os dentes com a torneira aberta não é nada, nada mesmo, comparado a comer carne.

Comer carne é cultural. E reflete a cultura de um povo que pensa a curto prazo, usando indiscriminadamente recursos naturais, condenando o futuro e falsificando consciência sustentável, revelando-se completamente egoísta, alheio às necessidades das pessoas ao redor.

A violência é cultural. Animais que se alimentam de carne são violentos, territorialistas, hostis ao convívio próximo de outras espécies. Ou dominam ou são dominados. A sobrevivência dos animais carnívoros depende disso. A sobrevivência do ser humano não!

Como esperar que um povo compreenda o absurdo de condenar milhões de vidas inocentes à dor e sofrimento? É cultural. Soa cármico. Em algum lugar deve estar escrito, sob assinatura de forças divinas, que quem não tem dinheiro (e isso inclui animais humanos e não-humanos) nasceu fadado e condenado à gula mercenária desse estranho animal que mata e deixa morrer por prazer.

Luis Felipe Valle
Abril de 2010